Historicamente, até a instituição da figura do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) no Brasil – pela Lei n° 5.107 de 1966 – era preponderante no ordenamento jurídico brasileiro a figura da estabilidade decenal, a qual consistia na garantia de emprego aos empregados que completassem 10 (dez) anos de serviço para o mesmo empregador. Após completar esse tempo de serviço (10 anos), o empregado fazia jus à estabilidade definitiva no emprego, sendo que só poderia ser demitido caso fosse comprovado o justo motivo/a justa causa, nos termos do artigo 492 da CLT.
Com a instituição do FGTS em 1966, o empregado passou a poder optar pela estabilidade decenal (caso viesse a completar 10 anos de serviço para o mesmo empregador) ou pelo regime do FGTS. Se optasse pelo regime do FGTS, o trabalhador renunciava à estabilidade decenal do artigo 492, da CLT.
A partir do advento da Constituição Federal de 1988, passou-se a ser obrigatória a adoção do regime do FGTS (para todos os contratos de trabalho celebrados a partir da promulgação da CF), findando-se, assim, a hipótese que o ordenamento jurídico brasileiro detinha de estabilidade definitiva no emprego (estabilidade decenal).
Permaneceram vigentes em nosso ordenamento jurídico, assim, apenas hipóteses de estabilidades provisórias de emprego, tais como doença ocupacional adquirida ou acidente de trabalho sofrido, empregos públicos, dirigentes sindicais, gestantes, etc.
De qualquer modo, a Constituição Federal de 1988 elenca no Artigo 7°, inciso I, que:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;
Assim, pode-se concluir que há sim ressalvas em relação à dispensa arbitrária pelos empregadores, ou sem justa causa, conforme expressamente estabelecido na Constituição Federal Brasileira.
A “lei complementar” (que consta no inciso I, do artigo 7°, da CF), cuja função seria, expressamente, de regulamentar a indenização compensatória que permitiria a dispensa arbitrária ou sem justa causa, até hoje (32 anos após a promulgação da CF/88) não foi promulgada.
Foi promulgada apenas lei ordinária (Lei nº 9.491, de 1997) – quase 10 anos após a entrada em vigor da CF/88 – que incluiu o §1°, do artigo 18 da Lei n° 8.036 de 1990, estabelecendo como indenização ao empregado, em caso de dispensa sem justa pelo empregador, a multa de 40% sobre o valor total do Fundo de Garantia sobre Tempo de Serviço (FGTS).
Nota-se, pois, que a intenção do legislador era isentar as empresas da obrigatoriedade de manter o empregado de forma definitiva – após 10 anos de serviço -, dando, em contrapartida, uma contraprestação pecuniária ao empregado que teve seu contrato de trabalho rescindido, sem justo motivo.
Feitas essas considerações preliminares, que ilustram um pouco o cenário histórico que o Brasil viveu até hoje em relação à estabilidade no emprego, passemos à análise das relações trabalhistas e da possibilidade de dispensa sem justa causa, neste momento que infelizmente nosso país, bem como o mundo inteiro, está vivenciando: a pandemia do coronavírus.
Como elencado acima, o artigo 7°, inciso I, da Constituição Federal, garante expressamente que HÁ SIM proteção constitucional contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa. Assim, partindo dessa premissa primordial, chegamos à clara conclusão de que “o direito de mandar embora” não é absoluto.
A pandemia do COVID-19 coloca em risco no Brasil – e no mundo – três direitos humanos internacionalmente reconhecidos como fundamentais: o direito à vida (art. 5°, caput e art. 225), o direito à saúde (art. 196 e art. 197) e o direito ao trabalho (art. 6°, caput; art. 170, e art. 193). Todos esses direitos estão assegurados em nossa Constituição, e são de responsabilidade de TODA A SOCIEDADE, e não somente o do Estado – por mais que também seja, é claro. Veja-se:
-VIDA:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)
– SAÚDE:
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
– TRABALHO:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
Sendo dever da sociedade como um todo, consequentemente é dever da iniciativa privada e/ou dos empregadores, a busca pela manutenção dos empregos e por condições dignas aos seus trabalhadores, durante todo o período que perdurar a calamidade pública gerada pela proliferação desmedida e problemática do novo coranavírus.
Como sempre, a crise tende e irá atingir aqueles que se encontram com maior grau de vulnerabilidade na dinâmica social. A atual crise do COVID-19 (de cunho sanitário e econômico, ao mesmo tempo) não possui outra faceta: o novo vírus vai se espalhar, vai atingir a muitos, mas aqueles que mais sofrerão e mais morrerão (pela Covid-19 ou de fome) serão os mais vulneráveis.
Dessa forma, o empregador tem uma obrigação: se esforçar AO MÁXIMO para garantir a vida, a saúde, o trabalho, e consequentemente, a renda, daqueles que contribuíram (as vezes, por anos a fio) na obtenção de lucro desse empresário. O risco do empreendimento é exatamente este: um dia você lucra, um dia você pode deixar – ao menos momentaneamente – de lucrar.
Vejamos exemplos atuais de setores que estão lucrando demasiadamente com a proliferação do conoravírus: o setor de álcool gel e as redes de hospitais. Quando da obtenção desse lucro, os donos dessas empresas “sortudas” vão repartir com seus empregados os valores obtidos pelo alto consumo e pela alta demanda provenientes do medo e do caos? Lembrando que no caso específico das redes de hospitais privados, o lucro será advindo exatamente da força trabalhadora que estará na linha de frente ajudando aqueles que estão contaminados pela nova doença, arriscando diariamente as suas vidas para tanto.
A resposta é óbvia: não, os setores que estão obtendo alto lucro em meio ao caos, não vão aumentar o salário dos seus funcionários por conta disso. Porque a lógica do mercado é exatamente essa…
Assim, repita-se: o risco do negócio é do empregador, quer quando ele lucre, quer quando ele tenha altos prejuízos. Cabe igualmente ao empregador ter uma boa administração de sua empresa, de modo a conseguir lidar com esses momentos de crise (sem ter como a primeira das opções, a demissão em massa dos seus funcionários).
Sendo uma crise que envolve a saúde e à vida das pessoas, mais do que nunca a demissão é uma verdadeira PERVERSIDADE por parte dos empregadores. Não cabe a eles nutrir o pensamento de que estão isentos de qualquer responsabilidade social perante os seus funcionários.
A título ilustrativo, pode-se citar exemplos atuais de perversidade por parte de alguns patrões em relação às empregadas domésticas e aos cuidadores de idosos. Muitos destes trabalhadores foram dispensados de comparecimento ao serviço, tendo em vista as medidas de isolamento social e quarentena. E não são poucos os empregadores que deixaram de pagar salário, ou simplesmente dispensaram esses funcionários, deixando-os totalmente a “Deus dará” em meio a essa crise sanitária e econômica.
Já há outras medidas disponibilizadas pelo Governo Federal para ajudar os empresários a passar por essa crise, com menores impactos econômicos. Cabe aos empregadores, de tal modo, adotarem medidas que preservem a saúde, a vida, a renda digna e o trabalho daqueles que lhe ajudam diariamente no sucesso dos seus negócios.
Importante frisar, ainda, que o Tribunal Superior do Trabalho firmou o entendimento, durante anos, de que a demissão em massa só possui validade se firmada com a participação dos sindicatos dos trabalhadores, ou seja, mediante prévia negociação coletiva, visto que a dispensa coletiva unilateral viola princípios e normais constitucionais e internacionais. Isso denota, mais uma vez, a premissa maior de que o direito de demitir NÃO é absoluto.
Pode se afirmar, pois, que o artigo 477-A da CLT – inserido pela Reforma Trabalhista (Lei n° 13.467/2017) – que permite a realização de demissões em massa pelos empregadores, mesmo sem a participação dos sindicatos, é claramente dotado de inconstitucionalidade. Tanto que foi ajuizada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6142/DF) impugnando este artigo de lei, pela Confederacão Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos – ainda pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF).
Conclui-se, assim, que, em tempos de pandemia, é de extrema necessidade que haja a preservação dos empregos e da renda digna dos funcionários através de todos os meios possíveis e cabíveis, tendo em vista o dever constitucional atribuído aos empregadores, de preservar a vida e a saúde dos seus funcionários, e garantir a subsistência dos seus empregados durante esse momento de ainda maior vulnerabilidade social.
Texto de Flavia Bertoli, que compõe a equipe de advogados da Tambelli, especialista em direito do trabalho, formada pela PUC-SP.